Auto da Compadecida e a Cultura Popular #OGS71

por | mar 7, 2014 | Diários de Uma Escritora, Resenhas, Sem categoria

Auto da CompadecidaE no acidente acabei comprando há um tempão uma edição comemorativa de 50 anos do Auto da Compadecida, me remediei lendo, e analisando essa cultura popular tão diferenciada.

Demorei muito tempo para ler o Auto da Compadecida, por quê? Não sei. Sempre achei toda essa parte da literatura nordestina, os cordéis, a cultura, aquela poesia quase infantil, os desenhos toscos, a xilogravura… tudo isso sempre me encantou de forma magnífica. Igualmente Suassuna, que realmente espero ter a oportunidade de conhecer, depois de a ter perdido há dois anos, o primeiro livro dele que tive contato foi o estudo dele da heráldica sertaneja, o Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja, de 1974, que felizmente tem na biblioteca da Fatea, onde eu estudei, um livro gigante, lindo, que vai analisar toda a linguagem e significado presente nos ferros de marcar gado, em que foi baseada a fonte usada nessa edição especial do Auto da Compadecida.

Nessa edição, há as ilustras lindas do Manuel Dantas Suassuna, filho do Ariano, que tem todo esse climão lindo que super combina com a história.

Auto da Compadecida 1

E achei melhor não falar sobre a história nessa resenha, ainda mais porque a história todo mundo já conhece, então não é necessário. Mas vou falar sobre um dos textos que li nessa edição e que me deixaram refletindo massivamente.

Há três textos extras nessa edição. Vou falar fora de ordem que quero deixar o que mais gostei pro final. HAHA

auto 6 auto 7Esses dois primeiros textos vão ter fotos da família, das apresentações, dos causos de plágio que ocorreram, a vida do Suassuna, os dados todos.

auto 5Mas. Esse texto do Braulio Tavares, achei incrível.

Disse ele: “Como foi que o senhor teve aquela ideia do gato que defeca dinheiro?” Ariano respondeu: “Eu achei num folheto de cordel.” O crítico: “E a história da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa?” Ariano: “Tirei de outro folheto.” (…) O sujeito impacientou-se e disse: “Agora danou-se mesmo! Então, o que foi que o senhor escreveu?” E Ariano: “Oxente! Escrevi foi a peça!”

Página 191, Braulio Tavares, Auto da Compadecida

Ele falou dessa diferença entre autoria quando se apossa de algo que é uma cultura comum, o folheto de cordel não tem autor, então, pode-se mudar a lenda, mudar os detalhes, e dizer simplesmente que é seu. Não estamos acostumados com essa ideia de que alguém pode ser o autor de qualquer coisa se não escrever cada letrinha. Cada detalhe. Cada acontecimento.

A reação de estranheza do crítico (supondo-se que o episódio de fato ocorreu) deve-se certamente à frustração de uma expectativa, a de que o Autor de um texto teatral deva tirar esse texto inteiro de sua própria cabeça, de sua própria imaginação. Um Autor que se apropria de cenas concebidas por outra pessoa pode parecer, por um tal critério, um sujeito meio desonesto. E se confessa abertamente tê-lo feito, aprece ainda por cima, cínico. Este modo de pensar do crítico não é de todo injustificado, porque se olharmos em torno de nós e virmos a pirataria e a picaretagem que campeiam no mundo das artes e da cultura-de-massas, pensaremos de imediato que é preciso vigiar muito de perto qualquer indivíduo que admita ter-se apossado da criação alheia.

Página 192, Braulio Tavares, Auto da Compadecida

A questão de “roubar” os detalhes das histórias de cordel nesse ponto de vista não é no sentido de plágio, essa cultura teatral sempre seguiu certas fórmulas que também não tem autores, uma história segue lógicas de acontecimentos que se inspiram em outras histórias, tem o começo, o protagonista que sofre alguma perda, alguma coisa para que saia de seu lugar, há várias características em comum com várias outras, e a originalidade está em mesclar todas essas, principalmente no teatro mais cultural, mantendo a tradição, mantendo a cultura e passando em frente de uma forma pessoal e original.

auto 4

Outro trecho que acho quase poético dele é quando ele cita que na verdade o teatro, os folhetos de cordel são todos da tradição oral, eles só foram deixados na prosa por comodidade e meio de transporte, quando alguém recita aquele cordel, o reconta de outra forma, está passando essa cultura para frente e a enriquecendo com um pouco de sua própria personalidade, aquela história então se torna original.

O cordelista, ao versar uma história alheia, faz uma distinção intuitiva entre as peripécias que são narradas e as palavras escolhidas para a narração. Recontar uma história alheia, para o poeta e o dramaturgo popular, é torná-la sua, porque parece existir na cultura popular a noção de que a história, uma vez contada, torna-se patrimônio universal e transfere-se para o domínio público. Autoral, apenas, é a forma textual dada à história por cada um que a reescreveu e reescreverá.

Página 194, Braulio Tavares, O Auto da Compadecida

Achei um ponto de vista tão interessante, que parece óbvio depois de se ouvir, mas que nunca tinha pensado nem de longe nisso, esse recurso existe amplamente nas artes populares, como ele diz em outro trecho, claro que se isso acontece na “literatura erudita”, é considerado um plágio, mas no circo, no teatro, numa contação de história, é tudo possível, é tudo válido, é uma cultura sendo passada de boca em boca, um recurso que existe sabe-se lá desde quando, que vai se adicionando a cada geração que a ouve. Parece um recurso tão antigo, que pode parecer estranho que consiga ainda ser tão usado, ser um dos maiores veículos de cultura até hoje…

 

Auto da Compadecida
Autores: Ariano Suassuna. Ilustração por Manuel Dantas Suassuna e textos de Braulio Tavares, Carlos Newton Júnior e Raimundo Carrero.
Editora: 
Agir
Páginas: 234

 

 

 

 

 

 

 

2 Comentários

  1. Gabi

    Para ser sincera, estes livros mais antigos e “nordestinos”, com toda a cultura de cangaceiros, os desenhos, os cordéis não me agradam. Bem ao contrário de você. Já li alguns livros nacionais de escritores que marcaram histórias no país, mas são histórias mais gerais, sem tanta cultura de um determinado povo impregnada. Gostei de você não ter falado sobre o livro em si na resenha, e ter feito um tipo de reflexão sobre essa cultura passada de geração em geração, de boca a boca, recontruindo-se e reinventando-se a cada vez. Parabéns!

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    • Camila

      Muito obrigada, Gabi!
      Há vários livros nacionais que não tem essa gana de passar toda uma cultura em suas páginas, às vezes apenas de um modo mais distante, por isso gosto tanto da simplicidade e sinceridade dos cordéis e dessa história que nem parece nossa de vez em quando, hehe.

      Beijos!

      Responder

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